
Diálogos entre periferias: a globalização do Movimento hip hop1
Dra. Angela Maria de Souza – angela.souza@unila.edu.br
Docente na UNILA –Universidade da Integração Latino-Americana
Pesquisadora do NAVI – Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem / GAUM – Grupo de Antropologia Urbana e Marítima
O Movimento hip hop ganha forma num contexto de globalização em espaços urbanos de médias e grandes cidades. Mesmo tendo se expandido a partir dos Estados Unidos, este Movimento nasce de um encontro de culturas, de práticas estético-musicais de populações negras e latinas em espaços de periferia. Mais do que uma arte ou uma manifestação da juventude, o Movimento hip hop torna-se espaço de debate político-social sobre vivências e experiência de jovens negros, homens e mulheres, imigrantes dos mais diversos países, questionando os problemas sociais que os cercam. Com uma proposta de discussão sobre as condições de desigualdades da população negra e imigrante nos Estados Unidos, o rap passa, no mundo, a ser a música associada ao estilo de vida de populações marginalizadas, como os emigrantes mexicanos e os asiáticos (EUA) os árabes e berberes (França), cabo-verdianos e angolanos (Portugal), jovens de origem turca (Alemanha), moradores dos banlieues de Paris, Marselha e Lyon (França), moradores das periferias no Brasil, etc. Mesmo em contextos sócio-culturais tão diferentes o Movimento hip hop se faz presente como uma importante forma de manifestação, direcionando redes e “fluxos” (Hannerz, 1994)2 que fazem repensar práticas sociais dentro de um contexto de “compressão do tempo-espaço” (Harvey, 1994)3.
São experiências e vivências sócio-político-culturais que ganham forma estética no debate de problemas comuns, como os encontrados nas periferias da Grande Lisboa (Portugal), como Cova da Moura (Amadora) e Arrentela (Seixal) e Grande Florianópolis (Estado de Santa Catarina – Sul do Brasil), nos bairros Monte Cristo, Chico Mendes e Jardim Atlântico (São José)4. Nestes espaços urbanos, estes jovens repensam suas práticas sociais e elaboram outras manifestações. E aqui os caracteriza as redes que vão se formando entre as periferias nacionais e que alargam-se transformando-se em fluxos transnacionais. São parcerias musicais que se formam entre países e que transpõem barreiras linguísticas no estabelecimento de redes de comunicação.
As músicas circulam, de maneira muito intensa, por canais pouco convencionais até bem pouco tempo atrás. São Blogs, My Space, Orkut, rádios virtuais, que ampliam consideravelmente o alcance da produção musical do rap, possibilitando inclusive novas parcerias musicais. Como ocorreu com o Grupo Reverso, de Florianópolis, que tem uma página no My Space. Desta forma, um grupo de rap da Romênia, acessou uma das músicas do Reverso, produziu uma outra versão dela e reenviou-a ao grupo. O diálogo transcorreu de forma bastante peculiar. Como os integrantes do Reverso não falavam inglês, nem o grupo da Romênia falava português, o jeito foi pedir ajuda a um colega de trabalho que entendia “alguma coisa de inglês”. E, com o auxílio de um dicionário, a comunicação se estabeleceu. Um dos critérios cobrados pelo Reverso para aceitar esta parceria foi a não inclusão de palavrões ou ofensas a Deus por parte do grupo romeno, já que faz rap gospel. O rap gospel é um estilo que é praticado principalmente por jovens evangélicos e neo-evangélicos, que apropriam-se da música também com o objetivo de evangelização. Para eles, o rap consegue influenciar jovens, principalmente de periferias, levando a palavra de Deus a espaços em que um pastor teria pouca aceitação. Por essa nova proposta estético-religiosa o rap passa a ter outras referências que tornam-se condição para a prática musical. Aceita as condições, a parceria musico-virtual se estabeleceu e eu tive a oportunidade de ouvi-la num dos encontros da BRC – Banca de Rap Cristão em Florianópolis. Esta produção musical fala, “aventura”-se (Simmel, 2004)5 pela cidade para nela poder circular, mas não limita-se a ela, ao contrário, a transpõe, como nos mostra o grupo Reverso e tantos outros grupos de rap.
O avanço tecnológico, além de possibilitar canais de circulação desta produção musical, proporciona rapidez, barateamento e facilidade na gravação musical. Com um computador e um programa apropriado o rapper pode gravar suas músicas em sua casa. Além disso, ampliam-se as possibilidades de criação ou implementação de canais musicais, mesmo que não implique em retorno financeiro. Contudo, o acesso a tecnologia é algo que ainda cria distanciamentos significativos, mesmo dentro do Movimento hip hop, já que muitos rappers, no Brasil, não possuem computadores em suas casas. Em muitos destes casos, as lan houses (cybercafe) possuem o papel de estabelecer esta comunicação virtual.
Nestes espaços urbanos globalizados o Movimento hip hop, através do rap, se coloca como construção narrativa de suas experiências e trajetórias de vida. Se em Lisboa encontrei o rap crioulo, realizado predominante por imigrantes cabo-verdianos e angolanos em bairros da periferia, em Florianópolis, o rap de quebrada, é uma importante forma de expressão da população, em grande parte negra, que reside em bairros de periferias e favelas e que através de sua música debatem os problemas que vivenciam, questionando a relação que a cidade estabelece com estes bairros. Nestes dois estilos rap, cada qual com suas especificidades, é possível perceber a elaboração de uma visibilidade estética como forma expressão, que emerge com uma “subjetivação do mundo” (Ferry, 1994)6 e que vai delineando-se na tensão entre o individual e o coletivo, o global e o local. E, a partir dos estilos estabelecem relações de consumo, principalmente a partir das musicas, que estes rappers movimentam e que vão apontar para as especificidades e localidades, como as relações que constroem com seus bairros, com a cidade, mas sem deixar de lado contextos mais amplos relacionados a movimentos de globalização e transnacionalização. A partir de uma relação produção-consumo estes jovens vão elaborar e implementar redes para a circulação destas produções musicais e com isso criam uma espécie de globalização paralela, entre periferias de cidades e de nações. No Movimento hip hop a música circula por culturas e se refaz em cada contexto cultural. Esta música constitui-se em movimento e também implica em “responsabilidades”, que pode aqui ser expressa a partir do compromisso que se auto-atribuem com o relato de uma realidade que vivenciam localmente e que torna-se denúncia de problemas sociais. Na denúncia de discriminação, da desigualdade, da violência, da exploração, manifestam-se e posicionam-se dando visibilidade a estas experiências através do Movimento hip hop. Protestam e chamam a atenção para estas vivências e suas implicações e, nesta atitude, redefinem e reorganizam sua postura social. Em função deste debate, “fluxos” (Hannerz, 1994) de comunicação vão se estabelecer, aspectos comuns à vivência nestas cidades vão surgir e pareceres sobre estas relações vão ser descritas em suas músicas. O Movimento hip hop amplia seu alcance a partir de um contexto de globalização, compressão do tempo-espaço e de um avanço tecnológico cada vez mais veloz que propicia a circulação de objetos, de músicas, de ideias que interligam estes espaços e que redefinem a própria globalização.
A grande parte destes jovens, seja no Brasil ou e Portugal, nos revela importantes deslocamentos. Se no Brasil estes deslocamentos podem ser pensados a partir da condição de “diáspora” (Hall, 2006)7 gerado pelo processo de escravidão de mais de 300 anos, em Portugal estes deslocamentos estão nos processos de imigração de uma parcela significativa de população negra, no caso do Movimento hip hop, principalmente de ex-colonias portuguesas como Cabo-Verde e Angola. Nas duas situações estes deslocamentos são determinantes da prática musical, seja apontando as consequências da escravidão ou ressaltando a importância e ao mesmo tempo desvalorização do imigrante no continente europeu. E nestes deslocamentos espaço-temporais o Movimento hip hop se recria e se desloca por espaços que ressignificam fronteiras e nacionalidades.
E com isso, amplia-se e escoa por espaços transnacionais e constitui-se no Movimento que lhe dá nome e que está na mão do DJ, nos grafites nas paredes dos bairros de Florianópolis e Lisboa, nas roupas e corpos dos rappers.
Desta maneira estabelecem novas relações de consumo e sociabilidade que redefinem o próprio Movimento hip hop estabelecendo redes que circulam e fazem circular produtos, ideias, informações entre periferias e que a partir dela expandem-se por espaços mais amplos, estabelecendo novas dimensões a suas práticas estético-musicais e estilo de vida.
1Pesquisa realizada com bolsa da CAPES e CNPq para a tese de doutorado (Souza, 2009).
Este artigo foi publicado em língua inglesa e com algumas modificações no www.materialworldblog.com em setembro de 2010.
2 HANNERZ, U. Cosmopolitas e locais na cultura global. In: FEATHERSTONE, M. (org.) Cultura Global: nacionalismo, globalização e modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
3 HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1994.
4 SOUZA, A M. “A caminhada é longa… e o chão tá liso”: O Movimento hip hop em Florianópolis e Lisboa. Florianópolis: Tese de Doutorado em Antropologia, UFSC, 2009.
5 SIMMEL, G. A aventura. In: _____ Fidelidade e gratidão e outros textos. Lisboa: Relógio D’água, 2004.
6 FERRY, L. Homo Aestheticus: a invenção do gosto na era democrática. São Paulo: Ensaio, 1994.
7 Hall, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.